"I hope the fences we mended
Fall down beneath their own weight"

John Darnielle

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quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Sobre Gaitán (e sobre Camus)


Escritor notável, Nobel da Literatura, referência ética de uma Europa a colapsar e guarda-redes de futebol no Racing de Argel. Albert Camus foi tudo isto e, certamente por isso, disse um dia que “depois de muitos anos, nos quais vi muitas coisas, o que sei de mais seguro sobre moralidade e os deveres do homem, devo-o ao desporto e aprendi-o no Racing de Argel”. A citação surge amiúde e vive de forma autónoma, contudo só recentemente apreendi o seu verdadeiro sentido.

Recorro a Eduardo Galeano, que cita ainda Camus sobre futebol, que nos revela por sua vez os ensinamentos dos anos de guarda-redes: “aprendi que a bola nunca vem ter connosco por onde esperamos que venha. Isso ajudou-me muito na vida, sobretudo nas grandes cidades, onde as pessoas não são, como se usa dizer, retas”.

Moralidades à parte, o que Camus também identificou com precisão foi a magia singular do jogo de futebol. Uma coreografia assente em regras, disciplina tática, movimentos previsíveis, mas que acaba por ruir porque, por mais que procuremos antecipar o que vai acontecer, “a bola nunca vem ter connosco por onde esperamos que venha”.

Hoje o futebol pode parecer uma exibição de organizações quase espartanas, com pouco espaço para a afirmação individual. Nada de mais errado. O futebol persiste grandioso apenas porque no meio da organização burocrática, do modelo de jogo ensaiado, há sempre uma nesga de criatividade que leva a bola por caminhos inesperados. Sem o rasgo taticamente irresponsável de um par de mágicos que vão resistindo às amarras, o futebol poderia existir, mas não teria nada para nos ensinar sobre moralidade.

publicado no Record de terça-feira.