"I hope the fences we mended
Fall down beneath their own weight"

John Darnielle

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quarta-feira, 16 de abril de 2014

O clube do povo



As primeiras mágoas são as mais duras e ficam para a vida. Eu sei quando o meu mundo futebolístico primeiro desabou: num verão quente de 82, quando o escrete de Telê Santana – um compêndio de poesia – foi derrubado pelo cinismo italiano e, depois, ao ver, em duas temporadas consecutivas, o Liverpool de Dalglish, Rush e Souness destratar o Benfica na Luz (numa das noites com uma exibição trágica do grande Bento).
Se o tempo não cura as feridas inaugurais, a maturidade ensina-nos a olhar de outra forma para as suas causas. Hoje, o futebol romântico das equipas de Telê continua a ser a medida de todas as equipas, mas não desdenho a organização racional das equipas italianas do início dos 80. E aprendi a admirar o Liverpool que vi esmagar o Benfica.
Não é o facto de o Liverpool ter sido o clube mais forte nos meus anos formativos como adepto de futebol que fez a diferença. Mesmo durante duas décadas de declínio, não deixei de vislumbrar na cultura reds a ideia que faço de um clube perfeito: paixão incondicional; ambiente marcadamente popular e um clube que pertence a todos.
Bill Shankly, escocês, filho de mineiros, herói da classe operária e manager mítico do Liverpool, disse um dia que a “palavra fantásticos tem sido usada muitas vezes, por isso tenho de inventar outra para descrever com precisão os espectadores em Anfield. É mais do que fanatismo, é uma religião. Para os muitos milhares que aqui vêm em adoração, Anfield não é um campo de futebol, é uma espécie de santuário. Estas pessoas não são apenas adeptos, são membros de uma família alargada”. Os cânticos arrepiantes entoados desde o kop e acompanhados por todas as bancadas continuam a ser sinal dessa unidade de propósitos.
As tragédias de Heysel e Hillsborough deram uma intensidade dramática acrescida ao Liverpool, mas puseram fim à senda vitoriosa. Foi por isso um ato de emocionante justiça poética que, 25 anos passados sobre Hillsborough, o Liverpool tenha voltado a depender de si próprio para ser campeão. Em Lisboa, celebrei a vitória contra o City quase como se de um jogo do Glorioso se tratasse. Como o meu Benfica, o Liverpool é o clube do povo. Só não é português.

publicado ontem no Record.